Francisco Elias de Godoy Moreira (1899-1987), certamente foi um daqueles homens que viveu muito à frente de seu tempo e muito além de seu espaço.
Quem poderia imaginar que aquele menino nascido em Itatiba – SP, que precisava caminhar sozinho por vários quilômetros, praticamente no meio do mato, até chegar à sua escola primária, cursaria o ginásio no Colégio Arquidiocesano de São Paulo, para, posteriormente, ingressar e cursar a Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo de 1917 até 22.
Na sua cidade natal, ganhou o apelido ao mesmo tempo carinhoso e jocoso de “Chico do brejo”, em razão da sua pouca habilidade no futebol, que resultou em diversas idas e vindas ao “brejo” para resgatar a bola por ele chutada.
Teve o seu currículo estudantil abrilhantado pela obtenção do primeiro lugar em um concurso público patrocinado pelo Instituto de Higiene da Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo, sob a direção do Prof. Geraldo de Paula Souza.
Sua obra e seu legado científico e cultural foram amplos e iniciaram-se em 1923, quando obteve o grau de doutor com a tese “Contribuição ao Estudo das Perfurações Intestinais no Decurso da Febre Tifoide”, considerado um tema de grande relevância para a época.
Uma vez concluído seus estudos e já fluente em vários idiomas, seguiu viagem para a Europa em direção aos mais avançados e conceituados centros de ensino de Ortopedia, obedecendo às suas tendências vocacionais. Para isto, contou com o valioso apoio e suporte financeiro de seu pai, Pedro Elias, um emergente e bem-sucedido sitiante de Itatiba.
Entre 1923 e 24, esteve na Alemanha onde, em Berlim, fez estágio inicialmente com o Prof. Paul Glaessner para, a seguir, trabalhar como assistente do eminente Prof. Konrad Biesalski, no Hospital Oskar-Helene-Heim. Nesta época verteu do alemão para o italiano, a obra de seu mestre, intitulada “L’unitá del Concetto Biológico-Sociale in Ortopedia”.
Entre 1925 e 26, em Bolonha – Itália, foi assistente interno do, não menos eminente, Prof. Vittorio Putti, que dirigia naquela época o fulcro máximo do saber ortopédico, representado pelo Instituto Rizolli da Faculdade de Bolonha. A seguir fez passagens por importantes hospitais de Ortopedia na França, Áustria e Inglaterra.
De volta a São Paulo, em 1927, fundou o chamado Instituto Ortopédico e Clínica de Fraturas na Av. Brigadeiro Luís Antonio, um hospital privado modelo, de cinquenta leitos, dedicado exclusivamente à Ortopedia.
Além do Instituto privado, Godoy Moreira foi trabalhar na Santa Casa de São Paulo, como assistente da 29ª Cadeira da Clínica Ortopédica e Cirurgia Infantil da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, Serviço do Prof. Luiz Manoel Rezende Puech.
Foi no ano de 1937, que Godoy Moreira, inspirado pelo parafuso proposto pelo americano Smith-Petersen, e após visita a este conceituado ortopedista em Boston-EUA, idealizou um sistema de fixação da temida e insolúvel fratura do colo do fêmur do idoso, constituído por um parafuso helicoidal, que passou a ser conhecido como “parafuso de Godoy Moreira”.
Em 1938, com apenas 39 anos, obteve o título de livre-docente da 29ª Cadeira, após submeter-se a Concurso de Título e Provas. Para isto, muito contribuiu sua clássica e maior obra científica, relacionada ao estudo, pesquisa e tratamento cirúrgico das graves sequelas da paralisia infantil, que culmina, em 1939, com a publicação da monografia “Princípios Fundamentais do Tratamento da Paralisia infantil”.
Com o falecimento súbito, em 1939, do grande pioneiro e primeiro Catedrático, Prof. Rezende Puech, Godoy Moreira em memorável Concurso tornou-se, aos 40 anos, o novo Catedrático da Disciplina de Ortopedia e Cirurgia Infantil. A sua Defesa de Tese teve o título ”Indicações dos Transplantes Ósseos em Ortopedia”.
Nesta ocasião a 29ª Cadeira funcionava no Pavilhão Fernandinho Simonsen da Santa Casa de São Paulo, conforme convênio celebrado com o Governo do Estado de São Paulo, e era chefiada pelo Prof. Domingos Define.
Assim, Godoy Moreira assume a chefia da 29ª Cadeira da FMUSP, embora não automaticamente a do Pavilhão Fernandinho Simonsen pios, como é sabido, a Faculdade de Medicina era apenas hóspede da Santa Casa, que cedia suas enfermarias e instalações à Faculdade.
Evitando conflitos, a direção da Faculdade de Medicina ofereceu ao Prof. Godoy Moreira, a 5ª Enfermaria de Cirurgia de Homens da Santa Casa (Serviço do Prof. José Soares Hungria), ala que contava com 15 leitos e onde foi instalado o Curso de Graduação para os alunos da FMUSP.
A construção do Instituto Central do Hospital das Clínicas teve início em 10 de outubro de 1938, mas só ficou pronto em 1942, e foi inaugurado oficialmente em 19 de abril de 1944, tendo sido o Prof. Godoy Moreira nomeado como seu primeiro Diretor Clínico, em 1942.
De imediato, como há muito aguardava, transferiu seu Serviço de Urgência da Santa Casa para o Pronto Socorro do Hospital das Clínicas, contando com 120 leitos para atender todos os casos de traumatismos do aparelho locomotor, crânio e buco-maxilo-facial. Neste mesmo ano de 1944, realiza, com grande repercussão jornalística, a primeira intervenção cirúrgica eletiva do recém-inaugurado Hospital.
Foi também em 1944 que a Congregação da FMUSP aceitou o pedido de Godoy Moreira, para que a 29ª Cadeira passasse a se denominar Cadeira de Ortopedia e Traumatologia e o Serviço, de Clínica Ortopédica e Traumatológica (COT).
Em janeiro de 1946, criou e foi o primeiro Editor Chefe da prestigiosa Revista do Hospital das Clínicas, redigindo e assinando o Editorial de apresentação e o seu trabalho científico de abertura, intitulado “Tratamento da Pseudoartrose do Colo do Fêmur pela Osteossíntese”.
Todavia, a grande obra e o maior legado de Godoy Moreira, foi sem dúvida alguma, o de haver planejado, projetado, viabilizado, instalado e inaugurado o atual Instituto de Ortopedia e Traumatologia do HC-FMUSP.
Sua criação foi decretada em 25 de outubro de 1944, embora só tenha sido inaugurado em 31 de julho de 1953, contando com 300 leitos e equiparando-se aos principais centros mundiais de Ortopedia, tornando-se, desde então, um marco de excelência e referência do ensino, pesquisa e assistência.
A assim conhecida originalmente como COT (Clínica de Ortopedia e Traumatologia) foi viabilizada em função do devastador surto de poliomielite que assolou o país na década de 40 (com seu auge no ano de 1960), fazendo como vítima, na sua forma anterior aguda ascendente tipo Landry, Getúlio Vargas Filho, o segundo filho do então Presidente da República Getúlio Vargas.
Após submeter-se a seguidas e complexas cirurgias de transferências músculo-tendinosas realizadas por Godoy Moreira, Getúlio Vargas Filho veio a falecer em fevereiro de 1943, aos 23 anos de idade, por insuficiência respiratória. Logo após perder seu filho, e impressionado com os bons resultados obtidos pelas seguidas e complexas cirurgias ortopédicas, Getúlio Vargas promulga, em outubro de 1944, a pedido de Godoy Moreira, o decreto para a criação e posterior construção do futuro IOT.
Nos primeiros anos do IOT, várias foram as importações, via marítima, dos chamados pulmões de aço, verdadeiros tanques de aço em que permaneciam envoltos diuturnamente, os pacientes vítimas de grave insuficiência respiratória causada pela mesma forma anterior aguda ascendente da paralisa infantil, que vitimou Getúlio Vargas Filho.
A partir de 1954, Godoy Moreira criou grupos especializados dentro da própria Ortopedia, proporcionando a formação de uma constelação de brilhantes livre-docentes, culminando com a criação, em 1970, do Curso de Pós-Graduação do Departamento de Ortopedia e Traumatologia da FMUSP.
A constante preocupação com a reabilitação dos pacientes, incrementada pelas vítimas da II Grande Guerra Mundial, levou o Prof. Godoy Moreira a criar, em 1959, sob os auspícios da ONU, o Instituto Nacional de Reabilitação (INAR), anexo ao IOT e pioneiro no gênero na América Latina.
Em 1966, aos 67 anos de idade, Godoy Moreira aposenta-se precoce e voluntariamente de todas as suas funções ligadas ao IOT e à FMUSP, passando a se dedicar em período integral à sua prestigiada e movimentada Clínica de Ortopedia e Fraturas Godoy Moreira. Faleceu aos 87 anos, em janeiro de 1987.
Por justa homenagem, o Instituto de Ortopedia e Traumatologia do Hospital das Clinicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (IOT-HCFMUSP) passou a chamar-se, por decreto-lei estadual a partir de agosto de 1990, Instituto de Ortopedia e Traumatologia “Professor F. E. Godoy Moreira”.
Tanto sua obra científica como a criação do próprio IOT, contaram com a inestimável e imprescindível colaboração dos seus sucessores imediatos, os Professores Flavio Pires de Camargo e Manlio Mario Marco Napoli.
Não menos importante do que seu legado científico, foi o vasto legado cultural deixado por Godoy Moreira e encontrado, na sua maior parte, no andar térreo do prédio do IOT. Logo na entrada do edifício, encontramos um belo portal de vidro jateado, vindo da Itália a pedido de Godoy Moreira e onde se destacam, duas figuras que reproduzem a árvore da Ortopedia (estaca fixando tronco de árvore tortuosa em crescimento), idealizada pelo Prof. Nicolas Andry de Boisregard da Universidade de Paris – França, em 1741.
No Espaço Cultural situado no saguão, destaca-se a reprodução de uma Estela votiva egípcia da XIX Dinastia (mais de 1.300 anos A.C.), originária de Memphis, denominada “O Porteiro Roma”. Nela há a representação do Porteiro Roma com uma deficiência física (pé equino) que, acredita-se representar a primeira ilustração da poliomielite. O Prof. Godoy Moreira obteve permissão para a reprodução da referida obra, que se encontra na ala egípcia da Gliptoteca Nacional de Copenhague – Dinamarca.
No hall deste mesmo andar, há uma bengala de apoio de marcha, que foi utilizada pelo ex-presidente americano, Franklin Delano Roosevelt, outra vítima ilustre da poliomielite em sua forma adulta. A peça histórica foi doada a Godoy Moreira, após a morte do ex-presidente em 1919, pela viúva do grande estadista norte-americano, Eleanor Roosevelt.
Ao fundo do andar térreo do IOT, encontra-se um busto de Godoy Moreira, viabilizado por seus assistentes, discípulos e inaugurado pelo seu já falecido filho ortopedista, Roberto de Godoy Moreira. No mesmo pode-se ler a inscrição: “Ao idealizador deste hospital, fruto de sua atividade perseverante e incansável”.
Dr. Eduardo de Souza Meirelles
Médico Assistente Doutor
Grupos de Reumatologia e Osteometabologia
IOT – HCFMUSP